Um paradoxo, por um dia
            Na obra de Nuno Nunes Ferreira persiste uma prática  arquivista que se desenvolve como um motor interno ao seu processo de trabalho.  Se em muitas obras esse procedimento é imediatamente visível, noutras emerge  como um segmento organizado e concatenado segundo outros parâmetros que a obra  exige, sem ficar refém de prática arquivística mais canónica, que no seu caso  em particular passa também por uma actividade respigadora que interpela a ideia  de arquivo como um sistema que apenas se alimenta do registo seguinte. Se  quisermos, podemos caracterizar esta actividade como nómada, no sentido em que  a procura não é sempre predeterminada por um objectivo concreto, mas também não  se resume à mera agregação e colecção de curiosidades. 
              Nunes Ferreira tem uma estreita relação com a história  enquanto possibilidade de reorganização do conhecimento humano em áreas muito  diversas, tais como a política, as narrativas populares, as histórias e as  estórias que por vezes são narradas pelas imagens, entre outras que nos  desafiam a memória, o conhecimento, ou os temores da guerra e da coerção  autoritária subjacentes à relação política anteriormente mencionada. 
              Por outro lado, o artista revela uma forte determinação  em alargar as suas pesquisas, construindo esquemas visuais em que aparentemente  nos perdemos, sem contudo esquecermos que o tempo e a sua métrica vão definindo  um olhar despudorado e muitas vezes transgressor que não se detém em abordar  temas ou reactivar o significado de registos históricos que conhecemos, mas aos  quais atribuímos o estatuto de objecto da memória, residente, e tantas vezes  resistente, no amplo espaço mental que nomeamos vulgarmente como “o passado”.
              É neste contexto que a obra “Circa Diem” foi pensada e  trabalhada para o evento efémero que é o EMPTY CUBE. O trabalho é exposto em  dois tipos de suporte, ocupando o espaço cúbico (e efémero) e a sala da galeria  Appleton Square, que acolhe o projecto. O primeiro suporte é dinâmico; o  segundo é de natureza inerte e só pode ser activado através do seu  manuseamento. No primeiro caso, estamos perante um dispositivo digital que se  faz representar como um relógio bibliográfico, uma espécie de marcação do tempo  real através da menção das suas unidades de medida escritas e inscritas na  diversidade de  documentos que nomeiam  cada segundo, minuto, hora, e finalmente um ano, ao qual correspondem apenas  duas páginas. O segundo suporte é materializado pelos documentos que deram  origem à digitalização do primeiro e que nos confrontam com a dimensão física  desse ano, dividido em pastas de arquivo organizadas cronologicamente à medida  exacta de um segundo. Todo este processo tem como base um estudo que Nuno Nunes  Ferreira fez sobre o conceito do ciclo circadiano (do latim circa diem, que significa cerca de um  dia). O ritmo ou ciclo circadiano estrutura na espécie humana comportamentos  que podem ser associados ao que denominamos como relógio biológico, integrado  na estrutura central do nosso cérebro (mais exactamente no hipotálamo) e que  age como um sistema regulador. Mas este fenómeno encontra correspondência nos  animais, nas suas migrações, e no desenvolvimento das plantas no ciclo temporal  sincronizado pela presença da luz solar e a sua ausência durante a noite.  Metáfora da ordem natural, e por vezes contraditória, que se estabelece entre a  vigília e o sono. Entre a presença do olhar e a sua resistência à falácia e o  esgotamento do corpo que cede ao devir.
              Nuno Nunes Ferreira aplica este modelo de forma  exponencial, tendo constituído um arquivo bibliográfico onde vamos encontrar  numa página de um horário de caminhos de ferro inglês a sinalização de um  momento desse ano: “twelve P.M.”, ou ainda, na última página do arquivo em  papel, as palavras “one second”. Esta será de facto a primeira página de um  arco temporal com a amplitude cronológica de um ano, que é dissecado num  movimento contínuo até ao último segundo desse ano e tem como referencial no  tempo o dia exacto do projecto realizado no EMPTY CUBE: 23 de Janeiro de 2015.  A métrica desta obra condensa a temporalidade justaposta a um palimpsesto  textual que escreve o tempo que este projecto declara perante nós,  aparentemente condensado mas paradoxalmente a decorrer em tempo real, ou  consultável página a página, obrigando-nos a suportar o peso da matéria que  cumprimos no tempo possível, mas também real, que a nossa corporalidade  permite.
            João Silvério
              Janeiro 2015